A bem dizer, a decisão de lutar pela criação de um museu de arte, em Florianópolis, surgiu no início de março de 1948, férias findas. Voltaram a ver-se quatro “barrigas-verde” que tornaram ao salutar hábito de se juntarem várias vezes por semana, tomar “umas e outras”, jogar conversa fora, moldar o mundo à sua feição e não deixar morrer ideia nascida anos antes, fruto do que consideravam um absurdo (desaforo, até!) a inexistência de instituição do gênero em Santa Catarina, no limiar, mesmo, da segunda metade do século XX.
Na realidade, o hábito referido existia fazia algum tempo, desde 1944, quando José Silveira D’Ávila, dando partida à brilhante carreira de artista plástico - desenhista, gravador, pintor e vidreiro - e eu, de olho no magistério, ingressamos na antiga Escola Nacional de Belas Artes. Lá fomos (re)encontrar os conterrâneos Flávio de Aquino, em vias de concluir o curso de Arquitetura e se iniciando, com muito brilho, na crítica de arte, e Moacyr Fernandes de Figueiredo, o Moa, já dando mostras inequívocas de seu grande talento como escultor.
Nosso ponto de encontro, após as aulas, noite chegando, situava-se bem à mão, nas ilhargas da Escola, o café e bar Porto Alegre, mais conhecido como “O Vermelhinho”, não tanto por sua decoração interna, paredes espelhadas na cor, igual à das mesas e cadeiras de vime na calçada, e sim - e principalmente - pelo “esquerdismo” da quase totalidade de seus frequentadores: artistas plásticos e de teatro, escritores, jornalistas, universitários, intelectuais de um modo geral. Ao longo de muitos anos, até que muitos deles se dispersassem, mudassem de pouso, houve os “assíduos”, os que “assinavam ponto” todos os dias, os “hebdomadários”, aparecendo uma vez cada semana. E os “eventuais”, os que, apenas ocasião ou outra, “davam as caras”, como então se dizia.
Entre os primeiros e segundos, citem-se o Caloca, o desenhista e arquiteto Carlos Leão, à época detalhando o projeto do prédio do Ministério da Educação e Saúde, concepção original de Le Corbusier; o jornalista Macedo Miranda, sempre chegando acompanhado de Santa Rosa, pintor e cenógrafo de nomeada; o professor, pintor e crítico de arte Quirino Campofiorito, o qual, juntamente com os pintores Bustamante Sá e Milton Dacosta, não se cansava de matar saudades do Grupo Bernardelli. Não esquecer, outrossim, o caricaturista e famoso contador de casos Álvaro Cotrim, o Alvarus, e o compositor e, também, caricaturista Nássara, já surdo como uma porta. Quem não deixava de pontificar, igualmente, era o desenhista e pintor Augusto Rodrigues, em trânsito no jornal que enriquecia com suas “charges” para o famoso apartamento da rua do Passeio, sempre atulhado de telas, tintas, pincéis e livros, mas onde nunca deixou de caber quem dele precisasse, conhecido ou não. (Começavam a surgir as primeiras fumaças da que, em breve, viria a ser a Escolinha de Arte do Brasil, uma das invenções mais sérias deste País). Refira-se, ainda, o paraibano José Simeão Leal, professor da Faculdade Nacional de Filosofia e crítico de arte, a imaginar seus Cadernos de Cultura e, também, o brilhante jornalista Marcial Dias Pequeno, cearense de Icó, dois metros de competência, humanismo e bom humor. É o crítico de arte e pintor José Maria dos Reis Júnior, com seu inseparável cachimbo, a lembrar dos que fizeram a Semana de 22, da qual participara também o pintor Di Cavalcanti, como sempre, pronto a pandegar por conta própria ou alheia. Impossível esquecer Carlos Drummond de Andrade, o grande poeta, e José Cândido de Carvalho, jornalista e escritor, que, um dia, se imortalizaria com O Coronel e o Lobisomem.
E, “last but not least”, os colegas de Belas Artes que, num futuro não muito distante, se projetariam como grandes artistas e professores universitários: Renina Katz e Abelardo Zaluar, Ubi Bava, Fernando Pamplona, nome ligado à revolução plástica operada na cenografia das escolas de samba e ao magistério superior; Napoleon Potyguara Lazzaroto, o paranaense Poty, glória de seu estado natal e grande expoente de Desenho e da Gravura; Hugo leite, ano após ano a lidar com política estudantil e assíduo frequentador, também, das celas do DOPS.
E, ainda, Nathalia Timberg e Cláudio Corrêa e Castro que já atuavam com muito destaque, no Teatro do Estudante do Brasil, os quais, depois de ornados, deram as costas à criação plástica e foram inventar memoráveis personagens no teatro, no cinema e na televisão.
Entretanto, verdade se diga: quem dominava ambiente frequentado por gente vinda de quase todos os Estados, para estudar ou trabalhar na, então, Capital Federal, era Marques Rebelo, romancista consagrado e cronista de qualidade ímpar. Nascido Eddy Dias da Cruz, levava muita fé na sua cria, o então menino José Maria, sem dúvida promissor talento, pelo que fazia e o orgulhoso pai exibia...
Em tempo no qual o Norte e o Nordeste ocupavam literariamente o território nacional, só Marques Rebelo, grande homem de letras carioca, fazia frente à inteligente inflação “pau-de-arara” (como se costumava dizer) numa cidade, o Rio de Janeiro daqueles dias, de convívio ainda extremamente cordial.
Recorde-se que, de início, vivia-se época na qual o mundo se movia a tiros de canhão e, por isso, o principal assunto das conversas era a guerra, tanto na Europa - onde os russos estavam pondo a correr de volta os blindados da cruz gamada, e os soldados aliados se apressavam a botar seus borzeguins nos chãos da Normandia - como no distante Pacífico, com os mariners "pererecando" de ilha em ilha e se avizinhando do Japão. Claro, tudo entremeado de diatribes contra o Estado Novo Caboclo (ditas bem baixinho, pois os espiões estavam em toda parte) e o que representava, mormente o ensino vigente na Escola de Belas Artes, onde estudávamos, com professores caninamente fiéis (salvo poucas e honrosas exceções) aos postulados do Academismo Neoclássico para cá trazidos pela Missão de 1816 e de há muito ultrapassados. E, também - por que não? - Quem estava namorando quem, a melhor cachaça para esta ou aquela batida de fruta, a peça de teatro estreada, o livro recém-editado, quem tinha sido preso pelo DOPS...
Quatro anos depois, no entanto - fazia muito terminara a guerra e se sepultara o Estado Novo -, assuntos outros passaram a dar linha à prosa, força, mesmo, de circunstâncias diferentes. E foi a vez, então, de acaloradas conversas a respeito da criação dos indispensáveis espaços nos quais os novos talentos mostrassem o que produziam, no rastro, mesmo, de iniciativas locais de grupos e movimentos literários e artísticos que brotavam por todos os cantos do País. Consequência lógica, reação contrária às restrições conservadoras e academizantes de uns tantos privilegiados - despreparados, quase sempre e, ontem como hoje, alçados a postos de mando (e de desmando) não por mérito, mas por apadrinhamento político e tão somente à cata de gloríolas de ocasião, sem compromisso com a cultura, e sim com a promoção pessoal.
Foi, então, que se começou a crer na possibilidade de Santa Catarina vir a ter afinal seu museu de arte, uma instituição que espelhasse a nova realidade cultural do pós-guerra. Animaram-nos, principalmente, as notícias da criação, no ano anterior, do Círculo de Arte Moderna e o aparecimento do primeiro número da Revista SUL, trabalho abnegado de jovens intelectuais catarinenses que, como nós, na Capital Federal de então, brigavam pelo novo. Seu mentor era Aníbal Nunes Pires, grande figura humana e que fora professor de todos nós no Ginásio Catarinense. Coadjuvavam-se Salim Miguel, Eglê Malheiros, Antonio Paladino, Hamilton Valente Ferreira, Elio Ballestedt, Salvio de Silveira, Ody Fraga, entre outros. E motivaram-nos não só a criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo e a luta, já em curso, em prol de seus congêneres no Rio de Janeiro e em Resende, como ainda as exposições de obras de artistas modernos organizadas por Marques Rebelo, a quem não foi difícil convencer a participar do sonho por nós acalentado.
Nunca será demais repetir que cabe, exclusivamente, ao saudoso amigo Flávio de Aquino, o competente articulador de sua criação, o mérito maior pela existência do Museu de Arte Moderna de Florianópolis (desde 1967, Museu de Arte de Santa Catarina) cuja sede, por ele concebida - o projeto foi estampado na Revista SUL - e a ser plantada na área aterrada fronteira ao Instituto Estadual de Educação, comporia com este, também de sua autoria, harmonioso conjunto arquitetônico próximo ao antigo centro histórico da Cidade, fazendo com que o ontem e o hoje se ajustassem em termos de proposta educativa e cultural. Credite-se a seu pai, o Senador Ivo de Aquino, a tessitura política necessária à oficialização de entidade cultural que surgiu na cauda da ventania provocada pela exposição de arte moderna montada no Grupo Escolar Dias Velho e por compromisso atado com a embira da naturalidade comum a todos nós, pois, embora longe, continuávamos filhos e fiéis à velha Cidade de Nossa Senhora do Desterro.
Agora, quase cinquenta anos passados, também poderia dizer como Apolonio de Carvalho: "Vale a pena sonhar!" O Museu de Arte de Santa Catarina é uma grande realidade, uma instituição respeitada, o orgulho de todos nós, catarinenses, pela seriedade e competência no trato da questão artística. Possuidora de excelente acervo, mantém exposição permanente e abriga exposições temporárias realizadas, sempre, com muito esmero, no curso das quais são montados eventos paralelos de Educação Artística para escolares do primeiro e segundo graus, o encontro com o artista e “workshop” com o expositor.
Além de possuir uma biblioteca, o Museu também leva a termo pesquisas em arte. Dotado de bem montada Reserva Técnica, o que é muito importante, situa-se em meio a complexo cultural - o Centro Integrado de Cultura - onde, diariamente, vive-se intensa programação de atividades artísticas.
Valeu, sim, sonhar!
Cacupé (Ilha de Santa Catarina), abril de 1997
Fonte: Biografia de Um Museu ( desenho de Aldo Nunes - Antiga sede do Museu, Av. Rio Branco)