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A Ilha Ilhada

Meados da década de 40. Florianópolis era uma cidadezinha acanhada e acomodada, parada no tempo, Ilhada Ilha, se bem que boa de viver. Necessitava de uma violenta sacudidela. E o momento era propício: a inquietação do pós-guerra mundial; esperança de um mundo melhor e mais solidário; a busca de novos caminhos; o desconforto de jovens e menos jovens, diante do panorama que se lhes descortinava como futuro, se não se mexessem, lutassem.
Na cidade, a insatisfação de alguns poucos diante do que viam, a sensibilidade de raros administradores, o incentivo de catarinenses residindo no Rio de Janeiro. As condições apontavam para mudanças. Bastava querer, brigar pelo novo, inventar, arrojar-se.
Tudo isto se conjurou em determinado instante e possibilitou aquilo que viria, dentro de pouco, sacudir o modorrento ambiente artístico-cultural da terrinha, marcada por uma curiosa dualidade: duas famílias dominando o pedaço, dois partidos políticos se revezando no poder, dois clubes sociais, dois clubes de futebol, dois clubes de remo, até mesmo duas ruas onde tudo desembocava. Rara a freqüência às belíssimas praias. À noitinha, era o tradicional “footing”, do Ponto Chic até o início da Praça XV. Sempre idêntico o cenário: os rapazes postados à beira das calçadas e as moças circulando. Daí surgiam namoricos e até casamentos. Mas havia uma divisão – e também ali a dualidade se fazia presente: as mocinhas da melhor sociedade jamais se aventuravam a circular pelo interior da Praça XV; aproximar-se da Figueira só durante o dia. Por ali eram as empregadinhas domésticas; ou as chamadas de “fáceis”, em busca de programas com rapazes; estes sim, depois de determinada hora (entre oito e dez da noite) abandonavam seus postos na beira das calçadas e saíam em busca de aventuras. O que mais? Ah, sim, é bom lembrar das sessões de cinema e dos bailaricos, do futebol e do remo.

A Gestação

Um reduzido grupo de jovens sufocava naquele ambiente. Começaram por se reunir em cafés, bares, esporadicamente restaurantes, na residência de um ou outro, esqueciam-se do passar das horas sob a Figueira, emendavam a noite com o amanhecer, calcurriando as ruas, ajudavam a fechar o Miramar, o Gato Preto, o Poema Bar ou um barzinho mambembe nas cabeceiras da Ponte Hercílio Luz.
Discutiam o futuro, quais as perspectivas de vida, o que fazer e como fazer. Alguns tinham veleidades literárias. Aventuravam-se a colaborar num tablóide intitulado Folha da Juventude (1946). (Que, pouco depois, publicava uma Página de Arte Moderna, dirigida pelo Aníbal Nunes Pires, o nosso Mario de Andrade). Não bastava. Quatro deles, mais insatisfeitos, que se autodenominavam “Os Quatros Justos”, partiram para um jornalzinho datilografado, Cicuta (1947). O próprio título já dizia ao que vinham, com o número quatro dominante: quatro colaboradores, quatro páginas, quatro exemplares, quatro números – e fim. O slogan do jornal, para que ele pudesse passar de mão-em-mão, pedia: “É costume do leitor Dar um fim desolador A quase todos jornais Mas leitor, não sejas mau Não faças a este jornal O que se fez aos demais!”. E no editorial do primeiro número se afirmava que era ele resultado do “ócio” e que “Não tendo o que fazer, os ‘Quatro Justos’ se reuniram no Café Rio Branco, centro predileto dos vadios, e lá, entre um gole de amargo café e uma praga a esta vida ruim, decidiram lançar o seu boletim oficial, canal que levará ao público os dissabores, o amargo e o doce de suas vidas e de sua eterna quebradeira”. Exemplo do humor e da irreverência foi o que se fez com o então presidente da Assembléia Legislativa. Chamava-se Estivalet Pires. A piada, infamemente primária, causou reboliço e indignação entre os bem pensantes. Dizia: “Esti...valet não chegará a rei.” O jornalzinho foi disputado, elogiado, criticado.
Tudo ainda insuficiente. Enquanto isso, o grupo aumentava. Novos novos chegavam. Eram, em sua quase totalidade, classe média ou classe média-baixa, vindos de diferentes regiões do Estado.
Certo dia, alguém lembrou: por quê não partimos para uma revista que dê o nosso recado, transmita o que pretendemos, deixe gravada nossa mensagem? Exemplos logo lembrados: Horizonte, de Porto Alegre, Clã, de Fortaleza, Joaquim, de Curitiba, que se tornaria mais conhecida como a revista do Dalto Trevisan. O primeiro passo foi pensar-se que tipo de publicação; depois, o título, muito importante. Tão importante que passaram-se semanas, e o consumo de boas doses de bebida, ou do “amargo café”, até se definir: estava-se no sul, então porque não Sul – sem nem ao menos sonharem que já existia, na Argentina, uma importante revista, dirigida pela escritora Vitoria Ocampo, com este título. Lá, colaborava, entre outros, Jorge Luiz Borges. (Mas os contatos com a Argentina ficam para adiante. Só que é bom acentuar, desde já, que se deveram, basicamente, a duas pessoas, o escritor Marques Rebelo e o escritor português Antonio Simões Jr. exilado da ditadura salazarista).
Só que havia outro “porém”: cadê recurso? Textos já existiam. Como todos os jovens, em todas as épocas e em todos os quadrantes do universo, quando alguém empunhava um texto e pedia, “me lê”, outro retrucava, puxando do bolso dele, “tá bem, mas também vais ler o meu.”
Até aí nenhum problema maior. Com a audácia que deve ser apanágio dos jovens (não só deles), já estavam se infiltrando pelos jornais da terra (O Estado, A Gazeta, Diário da Tarde). Era pouco. E era difícil. Saída mesmo só a revista. E os recursos para a impressão? Para que não morresse, praxe comum, do mal do primeiro, do terceiro, do sétimo número? Para que adquirisse estabilidade e credibilidade? Para que fosse algo instigante, provocativo.
Em dado momento, outro alguém (sempre surge outro alguém) lembrou: e teatro, por que não montamos uma peça – e com os recursos arrecadados lançamos a revista? Que peça? Como? Em que espaço? Existiam, viáveis, dois: o da UBRO – União Beneficente Recreativa Operária, e o TAC – Teatro Álvaro de Carvalho. Depois de muita discussão, decidiu-se por um espetáculo com três peças de um ato e pelo TAC, mais central, embora o da UBRO não fosse descartado, lá viriam a se realizar ensaios e até espetáculos. Assim foi feito. As peças: O homem da flor na boca, de Pirandello; Como ele mentiu ao marido dela, de Shaw; Um homem sem paisagem, de Ody Fraga e Silva (que por então se assinava Ody F.S. e dirigiu o espetáculo). O sucesso foi tanto que houve necessidade de uma segunda apresentação; a peça do Ody (pouco depois publicada na revista Sul), substituída por uma de Sartre, As Estátuas Volantes, adaptação de um conto do livro O Muro. Era a primeira apresentação de uma peça do papa do existencialismo no Brasil. E a primeira récita, casa lotada, no dia 7 de novembro de 1947. A segunda também lotou. O resultado da bilheteria foi tão positivo que deu, feitos os cálculos, para bancar até os dois primeiros números da revista e mais um jantar em um dos clubes da cidade. Bem verdade que o evento contou com a colaboração do Centro Acadêmico XI de Fevereiro, da Faculdade de Direito, onde integrantes do grupos já estudavam.
Resultado: em janeiro de 1948 aparecia o número 1 da revista Sul. O Editorial, assinado por Aníbal Nunes Pires, em certo trecho dizia: “...somos acusados de iconoclastas, destruidores atômicos de tudo quanto nos legaram os nossos antepassados. Absolutamente. Agradecemos sinceramente o que nos legaram. Mas só admiramos e agradecemos àqueles de cujas obras o tempo fez sua admirável seleção.” E mais adiante: “a Sul (Círculo de Arte Moderna), que hoje apresentamos a Florianópolis, se propõe, na medida das coisas possíveis, revelar novos valores e acompanhar as idéias do mundo atual no campo da filosofia, da ciência, da cultura e, principalmente, no campo das artes e das letras”. Um projeto pra lá de abrangente e ambicioso. E no número quatro, em outro Editorial assinado pelo mesmo Aníbal, uns versos do poeta português José Régio: “Não sei por onde vou não sei para onde vou sei que não vou por aí”, que assinalava a trajetória futura da revista, como quem diz ser contra a mesmice, o rebanho, o sim-senhor. E desde o início, a preocupação não era apenas com a literatura, mas também com o teatro, o cinema, as artes plásticas, a música, as manifestações de cultura popular, o debate das idéias. Claro que isto foi se concretizando aos poucos, à medida que o grupo amadurecia, se consolidava e adquiria mais visão de um universo cultural que não tinha, por então, como conhecer em sua totalidade. Será que alguém, algum dia, chega a isto?

Os Preparativos

O primeiro número da revista Sul era informe, incaracterístico, feito por pessoas que nunca haviam passado perto de uma gráfica. Composição manual, impressora que já devia estar em museu. O segundo, idem. O terceiro, já composto em linotipo, dando-se maior atenção às colaborações, e à apresentação gráfica, dedicado ao cinquentenário da morte de Cruz e Sousa, um tantinho melhor. E nele, uma noticiazinha em forma de pergunta: “ Marques Rebelo em Florianópolis?” Como se o pessoal da Sul nada tivesse a ver com aquilo.
A vinda do escritor, com sua Exposição de Arte Contemporânea, estava sendo preparada, ao mesmo tempo, em várias frentes: no Rio, pelo senador Ivo de Aquino, pelo médico, advogado, político em embrião e jornalista Jorge Lacerda (que por então dirigia o suplemento cultural de Letras e Artes), e por um grupo de jovens (Flávio de Aquino, José Silveira D’Ávila, Moacyr Fernandes, Alcídio Mafra de Souza) cujo ponto de reunião básico era o Vermelhinho, principal reduto de encontro da intelectualidade brasileira. Quem não freqüentava o Vermelhinho não acontecia. Todos eles se tornariam nomes significativos – e não só para a cultura de Santa Catarina.
No número 5 da Sul, nova notícia, agora não mais em forma de pergunta, mas em tom afirmativo: “Marques Rebelo em Florianópolis.” Dizia, em síntese, que estava confirmada a vinda do escritor, com a exposição e, em certo trecho, acrescentava: “Traz à nossa cidade pintores sobre os quais muito falamos, mas de cujas obras só conhecemos reproduções. Portinari, Pancetti, Segall, Santa Rosa, etc.” Neste “etc” estavam dezenas de outros.
A primeira carta a respeito foi do Flávio de Aquino, colega de estudos e amigo do Aníbal Nunes Pires. Começava dizendo: “Só ontem chegou-me às mãos um número da tua revista. Bravos! Nunca pensei que fosse possível romper o marasmo da terra e falar-lhe, sem rebuços, em arte moderna, em poesia moderna, em Vinícius de Moraes. Esperava isso para o século XXI.” Depois, como se fosse necessário, insistia no apoio ao Rebelo; e acrescentava: “Vai dar movimento à terra, ‘épater le bourgeois’ e apoiar, ao vivo, o pensamento do teu grupo.” Aníbal logo respondeu, por telegrama. Não demora a carta seguinte, agora do próprio Marques Rebelo. Avisa da chegada, pede que o esperem no aeroporto – e o mais importante, que lhe consigam acomodação, pois não gosta de hotéis. Aliás, nem era bem de hotéis, mas dos de Florianópolis. Dizia: “Preferiria não ir para hotel. Já passei uma noite aí a caminho do sul, pernoitei no LaPorta e não fiquei satisfeito. Suporto tudo numa casa de família, mas num hotel sou exigente. Você compreende, não é? Ora, se um dos rapazes da Sul tivesse a gentileza de me receber eu ficaria muitos satisfeito. Não precisava comida, só dormida.”
Impossível numa casa qualquer, mesmo porque alguns moravam em quartos de pensão. Acabou-se optando pelo casarão da Dona Cecy, mãe do Hamilton Ferreira, um dos formadores do grupo.

A Exposição

Se o número 5 da revista confirmava a vindo de Rebelo com a Exposição, no número 6, dezembro de 1948, tendo na capa uma obra do norte-americano Calder, ampla reportagem ilustrada, assinada por Archibaldo Cabral Neves, começava afirmando: “25 de Setembro de 1948 (sábado) – 6 de outubro de 1948 (quarta-feira) para muita gente foram apenas dois dias a mais que passaram, mas, para nós de Sul e para as pessoas interessadas na verdadeira pintura, não apenas os dois dias mencionados, como os intermediários, foram uma época de aprendizagem e de conhecimentos amplificados, sobre a pintura em geral e o contemporâneo em particular.” Local: pátio interno do Grupo Escolar Dias Velho, sob os auspícios da Secretaria de Justiça, Educação e Saúde, prédio onde hoje funciona a Faculdade de Educação da UDESC.
A exposição se concretizara graças a sensibilidade do governador Aderbal Ramos da Silva, do Secretário da Educação Armando Simone Pereira, do pessoal do Rio de Janeiro e dos componentes do Grupo Sul (como passaria a ser conhecido o Círculo de Arte Moderna, denominação original, cremos desnecessário dizer que era uma referência à Semana de Arte Moderna de 1922). A semente deitou raízes. E se houve incentivo e apoio, houve, também, críticas acerbas, virulente, um colunista de jornal afirmando indignado que “aquilo que se mostrava como arte, no espaço público da uma escola, era um acinte, afronta aos nossos foros culturais”, enquanto um pecuarista reclamava dos bois de Iberê Camargo. Além dos pintores brasileiros, havia reproduções do alemão Kubin, argentino Pettoruti, austríaco Leskochesk, espanhol Gomes de La Serna, franceses Lurçat, Derain, Dufy, Leger, português Joaquim Tenreiro, russo Zadkine, tcheco Jan Zak, entre outros, num total de 74 peças; e uma “contribuição infantil”, de José Maria, filho do Rebelo, hoje José Maria Dias da Cruz, nome expressivo da moderna pintura brasileira, e ainda destaque para os catarinenses Martinho de Haro e Eduardo Dias. Da mesma forma, pouco depois, quando de exposição em Minas Gerais, outra contribuição infantil lá estava, do nosso Rodrigo de Haro, hoje renomado pintor e poeta. Por aí se vê o faro do Rebelo...Não era só de literatura que o homem entendia. E não foi só em Florianópolis que sua ação em prol das artes plásticas se fez sentir. Exposições idênticas – e com idênticos resultados, foram levadas, também, a Resende-RJ e Cataguases-MG. (Vejo-me, aqui, na obrigação de dar um depoimento mais pessoal – se bem que todo este, em boa parte, já o é: Francisco Inácio Peixoto, de Cataguases e Marques Rebelo, do Rio, haviam estudado com Odílio Malheiros, pai da Eglê; e depois do golpe militar, quando fui me exilar no Rio e passei a trabalhar na imprensa, [Empresas Bloch], das primeiras pessoas que conheci foi o jornalista e escritor Macedo Miranda, que ajudara Rebelo na aventura da exposição de Resende, onde também se criou um Museu de Arte).
Aqui é bom outro lembrete: Flávio de Aquino, catarinense, professor, crítico de arte, arquiteto, jornalista, que faria parte da equipe de Oscar Niemeyer, preparou um ante-projeto de prédio para o Museu, que nunca chegou a sair do papel. Pode ser retomado? Pode!

Premonição

No mesmo número 6 da SUL, junto à reportagem da Exposição, aparece um texto de Rebelo, com várias reproduções, sob o título “Um grande artista argentino e a paisagem catarinense.” O artista chamava-se Jorge Larco, eram todas aquarelas sobre Canasvieiras (a igreja, o cemitério, a Ilha do Francês, a horta, os abacaxis). Seria premonição do escritor? Naquela época, raríssimos os turistas de qualquer nacionalidade – mesmo argentinos, que décadas depois invadiriam e se extasiariam com a Ilha já não tão ilhada. Em certo trecho diz Rebelo: “Ser artista é identificar-se. E Jorge Larco identificou-se com a paisagem brasileira.” Mais adiante: “Em suas aquarelas de mestre, está gravado esse essencial que caracteriza a costa catarinense...” Para assim concluir: “Nada escapou ao seu olhar penetrante; e ali está também o homem resignado, anestesiado, ínfimo e abandonado, sofrendo sua paisagem de desoladora beleza.” Mas ao tema Rebelo/Buenos Aires/Grupo Sul, teremos que voltar mais adiante.
Nos dias 28, 29, 30 de setembro foram proferidas palestras, instigantes e provocativas para o meio tão acanhado, seguidas de acalorados debates, Rebelo reiterando que “pintura não é imitação da natureza, mas interpretação da natureza”. Insaciáveis, isto não bastava; os jovens queriam sugá-lo ao máximo; longos papos varavam a noite, em restaurantes, cafés, até bares (ele não parecia muito apreciador de bares), sob a Figueira da Praça XV, Rebelo incansável ouvindo os jovens a questioná-lo. Uma frase, então, se tornou corriqueira, sempre repetida: “êta velhinho legal!” Ele mal chegara aos 40 anos, (nasceu em 1907) mas era “matusalêmico” para os jovens recém entrados nos anos 20.
Como resultado imediato da exposição. Surgiu um pequeno Museu, o pátio Marques Rebelo, sob a guarda de Martinho de Haro. O acervo inicial logo foi ampliado. Rebelo conseguiu, com o governador de São Paulo, Ademar de Barros, doação de quadros dos principais pintores paulistas. O mesmo fizeram, se bem que em doses reduzidas, o poder público estadual e particulares.

MAMF

Não demora, seis meses depois, é criado o Museu de Arte Moderna de Florianópolis. A data: 18 de março; o número do decreto: 433. E foi nomeada uma comissão, assim composta: Henrique Stodieck, Marques Rebelo, Wilmar Dias, Rubens de Arruda Ramos, Hamilton Valente Ferreira (do Grupo Sul), Martinho de Haro, “para determinar providências necessárias ao seu funcionamento, instalando-se no pátio interno do Grupo Escolar Dias Velho, sob a guarda e responsabilidade de sua diretora, professora Julieta Torres Gonçalves.” Ali, depois sob a direção de Sálvio de Oliveira, funcionou por mais de um ano.
A propósito, Hamilton Ferreira, que logo se transferiria para o Rio de Janeiro, publica um texto que começa assim: “Este decreto provoca uma série de parabéns. Em primeiro lugar, à mocidade catarinense, em especial a uma pequena turma de rapazes que a voz geral considerava amalucados, comunistas, reacionários, imorais, e mais uma porção de coisas assim e que, no entanto, não eram nada disso, eram jovens que haviam conseguido sair para o mundo e ver quanta coisa havia fora de sua pequena terra. Depois, ao escritor Marques Rebelo que, descobrindo a existência daquele círculo de interesses pelas coisas da literatura e da arte, esteve com sua exposição em Florianópolis e, tanto agradou, que se fundou o Pátio Marques Rebelo, onde está funcionando o recém-fundado Museu de Arte Moderna de Florianópolis. E ainda o Estado de Santa Catarina e seu Governo, por essa coisa significativa que é a fundação do primeiro museu oficial de Arte Moderna no Brasil...” Bom acentuar que o “sair para o mundo e ver quanta coisa havia fora de sua pequena terra”, do Hamilton, era em sentido figurado. Viajava-se muito, sim, mas pela imaginação, pelas leituras, em debates, embora o desejo de viajar para valer existisse.

Explosão de Valores

E a partir daí, na verdade, pode-se começar a visualizar um panorama de artes plásticas em Santa Catarina, com o rápido surgimento de muitos valores. Deve-se ressaltar, no entanto, a participação e o incenctivo de vários nomes expressivos de outras regiões do país. Ainda em 1949, ano da criação do Museu, é a vez do escultor Bruno Giorgi, que doa uma escultura de grande beleza (O Rosto e a Máscara) e profere a palestra, também com enorme repercussão; não demora, inícios da década de 50, é a vez de Carlos Scliar passar passar uma quinzena dando um curso de gravura e reunindo-se com jovens que se iniciavam na difícil arte da linóleogravura, do desenho, do óleo, da aquarela; também é bom assinalar a presença de outros nomes, entre eles Edgar Koetz, gravurista, pintor e capista da Editora Globo, e de Trindade Leal, que executa aqui uma série de xilos sob um mesmo tema, o lobisomem. E em 1958, quando o Grupo Sul dá por concluída sua missão, é criado do GAPF – Grupos de Artistas Plásticos de Florianópolis, ao mesmo tempo continuação e evolução do trabalho que se vinha realizando através das páginas da Sul e ponto de partida para a afirmação de alguns de nossos mais significativos artistas plásticos. Bom não esquecer o incentivo para que Martinho de Haro desse novo impulso à sua excepcional obra pictórica.
As seguintes peças, doadas por Marques Rebelo, constituiram a semente do MAMF: desenhos de Aldary Toledo, Santa Rosa, Noêmia Mourão; litografia de Kubin e aquarela de Jan Zach. Jorge Lacerda doou um desenho de Goeldi e Flávio de Aquino outro de Noêmia Mourão. Doados pelos próprios artistas havia aquarelas de José Maria e José Nery, um desenho de Aldemir Martins e outro de Santa Rosa a estas 11 doações somaram-se seis aquisições da Secretaria de Justiça, Educação e Saúde: três óleos, de Iberê Camargo, Djanira, Rubem Cassa e três gravuras de José Silveira D’Ávila. De acordo com o levantamento do museu, destas 17 obras do núcleo inicial, quatro sumiram: o desenho Mãe e Filho, de Noêmia, doado por Flávio de Aquino, o desenho de Goeldi, doado por Jorge Lacerda, a água-forte Gatos, de José Silveira D’Ávila, e o desenho ilustração, doado por Santa Rosa.
Até conseguir um espaço relativamente adequado, o MAMF, que em 1970 passaria a se intitular MASC – Museu de Arte de Santa Catarina, andou por várias, insalubres e inapropriadas salas, entre elas na Alfândega, na Casa de Santa Catarina, local onde hoje se encontra a Biblioteca Pública, numa casa na Avenida Rio Branco. Foi uma trajetória acidentada. Chegou a ter suas peças recolhidas num depósito do TAC. Registros de visitantes se encontram nos arquivos: um casal de turistas do Rio, deixa consignado que acabara “de constatar um crime em plena Florianópolis. Entramos pela janela! Encontramos os quadros jogados no chão – entre garrafas de champanhe. INCRÍVEL! Não sei se ficamos com raiva ou pena...”; outro afirma que, durante um coquetel qualquer, copos eram colocados em cima das telas. E no número 13 da Revista Sul cobravam-se providências para a instalação do MASC em lugar condigno. Felizmente ele conseguiu sobreviver a tudo isto. E se hoje não se encontra em condições ideais, caminha para isso, já tendo, até, sala climatizada.
Ao longo desses 50 anos (serão completados em 18 de março de 1999) dirigiram-no Sálvio de Oliveira, Martinho de Haro, João Evangelista, Carlos Humberto Correia, Aldo Nunes, José Silveira D’Ávila, Humberto Tomasini, Harry Laus (duas vezes), Edson Bush Machado, Hugo Mund Jr., Maria Teresa Collares, todos lutando por preservá-lo e ampliá-lo. Hoje, hospedado no CIC – Centro Integrado de Cultura, com um acervo de mais de 1.200 peças, é referência obrigatória no Brasil e no exterior, reconhecido por sua participação efetiva e valorização não apenas de nossos artistas, mas pela contribuição que dá à preservação e renovação no setor das artes plásticas e no apoio e incentivo aos novos valores. Seu atual diretor é o artista plástico Rubens Oestroem.

Intercâmbio

Em duas ocaisões, no transcorrer deste relato, referimo-nos à Argentina. Chegou a hora de sucintos esclarecimentos.
Rebelo, para além de excelente escritor, não foi apenas um apaixonado incentivador e divulgador das artes plásticas no país, (e também colecionador). Fez o mesmo na Argentina e no Uruguai. Na Argentina, em 1945, realizou uma exposição intitulada 20 Artistas Brasileños, promovida pelo Ministério de Justicia y Instrucción Publica de la Nación, através da Subsecretaria de Cultura. Na justificativa se dizia: “Que la referida muestra comporta uma seleción representativa de las tendencias del arte en Brasil; que el conocimiento recíproco de los exponentes de la cultura de dos naciones hermanas contribuirá aún más a afianzar la unidad espiritual de sus pueblos.” E que, diante disso, “Resuelve: llevar a cabo em los Salones Nacionales de Exposición, sitos en la calle Posadas número 1725, la Exposición de los 20 Artistas Brasileños, de la que es portador el señor Marques Rebelo.”
Na Introdução, Rebelo explica os critérios adotados para a seleção, dizendo que durante muito tempo “não tínhamos senão deploráveis imitações de escolas de belas artes e museus; não tínhamos galerias expositoras nem coleções particulares que estimulassem pelo contato e divulgação das obras, o interesse pelas artes. E como também não possuíamos publicações especializadas, faltava-nos orientação crítica.” Pouco depois: “A arte moderna, que surgiu no Brasil em 1922, pelo esforço de escritores, trouxe um novo ambiente para as artes, traçando-lhes também um caminho seguro.”
O mesmo que, um quarto do século depois, viria ocorrer em terras catarinenses, a partir da capital. Santa Catarina, no terreno das artes em geral, nem chegara ao estágio de antes da Semana da Arte Moderna de 1922, semana que já começara até a ser reavaliada, por elementos do grupo básico, Mário de Andrade por exemplo, que em lúcida crítica examinava seus acertos e desacertos.
Creio ser de interesse, mais de meio século transcorrido, relacionar os 20 pintores da mostra em Buenos Aires. Ei-la: Guignard; Alcides Rocha Miranda; Aldari Toledo; Portinari; Carlos Leão; Clóvis Graciano; Djanira; Di Cavalcanti; Hilda Campofiorito; Iberê Camargo; José Alves Pedrosa; José B. Cardoso Jr.; José Pancetti; Milton Dacosta; Orlando Teruz; Percy Deane; Quirino Campofiorito; Burle Marx; Tarsila; Santa Rosa.

Ampliação de Contatos

Marques Rebelo e Antonio Simões Jr. abriram caminho para um conhecimento, em bases solidas, da cultura dos países vizinhos. Mais um serviço que os jovens de Florianópolis ficam a lhes dever. Em pouco, começava-se a receber publicações, correspondências. Logo estava-se com correspondentes da revista em Buenos Aires e Montevidéu. Foram aparecendo contos, poesias, artigos de crítica, ilustrações, capas, duas deles de Pettoruti, talvez influência de Marques Rebelo, que tinha grande admiração pelo pintor argentino. Blanca Terra Viera era a correspondente em Buenos Aires (e também, embora seu nome não aparecesse no expediente, o Antonio Simões Jr.); de Montevidéu, Matilde Despaux. E lá, a revista e as edições Sul, tinham um ponto fixo de venda, a Livraria Monteiro Lobato. De 1949, por exemplo, é a carta da argentina Sara Sabor Vila, que diz, entre outras coisas, “He leido com sumo placer su contenido (Sul n.6), y puedo manifestarle sinceramente que ella honra a las letras y al arte brazileño, por la seleción del material que la compone, tanto artistico como literario.” De 1949 pulemos para 1957, ao doutor Roberto Martinez, professor do Colegio Nacional de la Universidad de la Plata, que diz: “Se por referencias que ‘Sul’ es uma de las mas prestigiosas tribunas intelectuales del Brasil...” Não só de Buenos Aires chegava correspondência. Também de outras regiões. (Será que fica exagerado dizer que, em determinado momento, praticamente de todo o mundo?). Como esta, da direção da revista Tarja, de Jujuy: “Nos es sumamente grato poder hacerle llegar um número de nuestra revista. Deseamos, al mismo tiempo, manifestarle nuestros deseos de mantener canje com la interesante revista de su dirección. Es innecesario destacar quanto provecho nos reportará el conocer las atividades literarias de lugares tan distintos.” E por último, de um então jovem poeta, Rodolfo Alonso, que se tornaria nome dos mais expressivos da moderna poesia argentina. Dizia ter tido notícia que ele, e mais outros poetas jovens argentinos (Raúl Gustavo Aguirre, Edgar Bayley, Osmar Luis Bondoni, Francisco Urondo, Francisco José Madariaga) haviam sido publicados em Sul e que todos gostariam de receber exemplares da revista.
Será que essas achegas, (para o livro dos 50 anos do MASC), de um fato ocorrido há tanto, chegaram longe demais? Não sei! Mas como se costuma dizer que somos um povo de memória curta, ou até sem memória, resolvi desencavar dados do conhecimento de bem poucos. E, afinal, se existe necessidade de outra qualquer desculpa, posso acrescentar que estive envolvido em tudo que aí ficou.
Fiquei mais no ante-ontem do que até mesmo no ontem, e nada, ou quase nada, no hoje. Mas o ante-ontem e o ontem, tanto quanto o hoje que amanhã já será ontem, nos fazer (re) pensar o passado e tentar uma projeção para o amanhã. Que, esperamos, torcemos, seja melhor, mais humano, mais solidário, sem tantas desigualdades.
Qual será o amanhã do MASC? Que ele é, hoje, uma realidade, ninguém duvida nem discute. Quanto ao seu futuro, já é outra história, como diria Kipling.
Esperamos que todos continuem se empenhando para que seja, cada vez mais, uma bela história.

Salim Miguel (escritor)
Florianópolis, 1999


Fonte: Biografia de Um Museu

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